As vozes sem rosto: Como a locução, uma profissão deslocada no tempo, sobrevive nos dias de hoje sem que ninguém perceba

A louça da janta já está sendo lavada, e é hora das crianças irem dormir. Elas resmungam para o pai que sacode a cabeça em sinal de desaprovação e ordena que os pequenos vão logo para a cama. Como última tentativa, o filho mais velho diz: “deixa só acabar ‘O Sombra’, pai, o episódio de ontem terminou me deixando curioso!”.

Essa cena não era incomum de se ver em meados da década de 40. O rádio era a principal fonte de entretenimento, e moldava as vidas das famílias. O Sombra, Cazé e Nhô Totico eram alguns dos programas favoritos que traziam grandes estrelas para a sala de milhões de casas espalhadas pelo Brasil. Com o advento da televisão, essas vozes foram perdendo a força para a mágica das imagens, que nasceram em preto e branco e se tornaram coloridas. Mas elas não sumiram como um todo, discretamente, continuam espalhadas pelo nosso dia-a-dia.

É o caso de Milton Silva de Carvalho, 71 anos, e há nove como locutor oficial do Estádio Paulo Machado de Carvalho, o nosso Pacaembu. Jornalista formado, Milton trabalhou uma vida inteira como locutor, seja no rádio, onde fez carreira em Brasília, ou em eventos e cerimônias oficiais. Perguntado se é amante do futebol, ele responde, rindo: “Imagine um camarada que realmente é torcedor, aficionado e gosta de trabalhar com futebol. É uma pena que eu não pude jogar bola direito”. Milton lida com torcidas semanalmente, mas como o Pacaembu é um estádio neutro e pertencente ao governo, seu trabalho se resume a “divulgar promoções, avisos e tudo aquilo que a própria torcida ou os clubes promovem”. Se a tarefa é fácil, não cabe a nós julgar, mas ele afirma que sua profissão não lhe causa preocupação. “Não me preocupo em mostrar meu rosto, trabalho em off o tempo todo, isso me despreocupa de estar sempre de terno e gravata. Prefiro que seja assim, um trabalho quase incógnita, só com a voz”, diz.

Locutores são pessoas que emprestam sua voz para o povo e a favor do povo, como um verdadeiro transmissor de ideias. As vozes sempre marcantes (fortes ou suaves) aparecem, além do jornalismo, no meio publicitário e nos serviços pessoais, como atendimentos eletrônicos. Quem nunca se pegou conversando com uma gravação no elevador, no metrô ou na televisão?

Para função tão importante, alguns sacrifícios são necessários. Maria Lucia Gomide Pontes, 34 anos, trabalha há 10 na Rádio Mix e também na televisão, canais HBO e Cinemax. “Não fumo e evito baladas nas semanas de trabalho pesado. Sempre me cuido e sou muito feliz, e isso se reflete na voz”, afirma. Sua formação é jornalismo, mas ela optou pela locução ainda na faculdade, como opção mais fácil para conseguir um emprego. Mesmo sem ter o rosto conhecido, Maria Lucia diz que é comum ser parada na rua. “Frequentemente pessoas me param para me ouvir e dizem ‘você não é a voz da TV?’. É engraçado”, diz, agradecendo o carinho. A falta do reconhecimento do rosto também não a preocupa. Sobre trabalhar no rádio agora em que sua época já passou, ela é categórica. “Não somos o espetáculo, nós devemos sim é fazer ele acontecer. Somos o meio, e não o fim. O glamour do rádio é uma ilusão, os tempos são outros”.

Apesar da clara paixão e desprendimento que se vê nesses dois exemplos, muitos insistem em afirmar que o rádio morreu, que as vozes perderam espaço para a imagem. Hoje é a internet que ocupa espaço central na vida das pessoas, mas o que é esquecido nesses casos é algo básico: o som é, tanto nos dias de hoje como antes, um fator de destaque importante para todas essas novidades que dizem tomar o lugar da voz pura. Sem ela os filmes seriam mudos, e os websites seriam apenas grandes livros sem papel. Talvez com a correria do nosso dia a dia a gente nem perceba, mas essas pessoas tem um papel simplesmente essencial na vida de todos nós. As famílias como a do começo da matéria ainda existem, mas quem sabe agora com “menos espetáculo” ou “quase incógnitas”.

Nota: O Vera tem um orgulho imenso de ter feito provavelmente a última entrevista com Milton de Carvalho, e de trazer aqui um dos poucos retratos registrados desse homem tão humilde. Descanse em paz.